Fazia tempo que não se via uma manhã como aquela. Tão cinza, tão fria. Ana respirava com a mesma intensidade da chuva finíssima que estava caindo. Praticamente imperceptível.
Ver o vidro da janela embaçado lhe deu uma sensação maravilhosa. Era algo que remetia à infância gelada no subúrbio, quando não podia ir para a escola porque a névoa tomava conta das ruas e não se via nem os faróis acesos dos carros. Ela permaneceu sob as cobertas por mais uns minutos, observando a luminosidade que estava um tico menos clara que o usual. O olhar ainda embaçado do sono dava um toque etéreo ao ambiente, como um sonho.
Aqueles tons de cinza invadiram o quarto dela, tentando se mesclar no azul claro da parede. Dessa vez o céu ficaria do lado de dentro, mas ela não podia se dar ao mesmo luxo.
Ana, então, abriu a cortina, abriu o vidro da janela e se debruçou nela, ainda vestindo apenas a camisola de seda. Sentir aquele ventinho cortante a ajudava a acordar, mas ele não estava energético como de costume. Ele pareceu suave demais. Quase não tinha cheiro de árvores, de flores orvalhadas e nem de terra molhada. Aquilo era bem estranho, já que ao lado do prédio de Ana havia uma área verde com flores e eucaliptos. O vento estava um resquício do vento que costumava ser. Agora ele estava apenas frio. Mas isso não era ruim, pois esse vento vazio a fez se sentir leve.
Mesmo com essas diferenças todas a distraindo, Ana se levantou e foi se arrumar para sair. Ela não tinha nada particularmente importante naquele dia, como nos outros dias, mas apenas ela cuidava daquelas banalidades. Ela pensou nessas coisas e viu tudo meio distante. Pareciam planos de outra pessoa, de outro tempo. De algum jeito, sua mente parecia estar alheia a tudo, mas sem perder a capacidade de sentir. De leve, devagar, como se as horas não existissem e só restasse a essência das coisas e dela mesma. A perspectiva de tudo estava diferente. Ela se sentia tão calma…
Ela terminou de se vestir. Colocou os sapatos, o casaco, o cachecol, penteou o cabelo. Deu uma última olhada no espelho, pegou a bolsa e saiu do apartamento. Ao sair do elevador, Ana ouvia os sons como se tivessem baixado o volume do mundo. Carros, vozes, latidos dos cães, tudo era bem abafado. Mas ao chegar à rua, um som foi disparado e a puxou para o que estava ao redor dela. De repente, todos os sons aumentaram. Ela ouviu carros freando bruscamente e pessoas gritando. Quando se deu conta, ela estava no chão e o porteiro estava ajoelhado ao seu lado, perguntando se ela podia escutá-lo.
Ana olhou para si mesma e viu todo aquele sangue. Um carro havia acertado Ana. Foi tão rápido que ela demorou para processar o que havia acontecido. Ela tentou acalmar o porteiro que tentava desesperadamente chamar uma ambulância. Mesmo o sangue sendo assustador, ela disse a ele que estava tudo bem, que não sentia dor alguma.
Depois de poucos minutos a sirene da ambulância se aproximava, os paramédicos abriram caminho até ela, pedindo aos outros para darem espaço. Estava uma confusão dos diabos, mas Ana não entendia o porquê, afinal, ela estava bem. Tão bem quanto antes de sair de casa, talvez até melhor.
Podia ser estranho, mas as coisas pareciam cada vez mais calmas dentro dela. O impacto devia ter sido só um susto, ela tinha certeza. Ana estava calma, leve… Ela até ousou pensar que estava feliz. Naquele momento, Ana reconheceu tudo que estava estranho desde que acordou. Ela havia de fato terminado tudo que tinha para fazer. Era hora de ela descansar e passar aquelas tarefas para outras pessoas. Ana fechou os olhos e se despediu da última manhã cinza e chuvosa que ela veria.
– Ela está sem pulso! Estamos perdendo a moça!